Cultura e Luzes

No período monárquico  a França assumiu sua identidade cultural com o surgimento de grandes figuras do cenário intelectual que se consolidaram ora com o beneplácito dos monarcas, ora enfrentando-os . Três escritores e dois homens de teatro consolidaram, cada um a sua maneira, a língua e o pensamento francês. René Descartes (1596-1650) correspondeu na filosofia a Galileu na ciência. Pensador puro, estabeleceu o famoso princípio “penso, logo existo” colocando a razão e não Deus no centro do pensamento filosófico. A partir dele, ocorreu uma espécie de gesto de abolição de qualquer vínculo do pensamento com o que estava fora de sua atividade. Deus passou a existir a partir do pensamento do homem. Descartes fundou a filosofia moderna num tempo em que  cientistas como Kepler e Galileu faziam com que o homem mudasse sua relação com o universo e consigo mesmo.

Michel de Montaigne (1533-1592), humanista, jurista, a princípio sem pretensões literárias ou filosóficas, desenvolveu o ensaio, um novo gênero de prosa. Analisando as instituições e os costumes da época, dominou e expandiu a língua francesa escrevendo sobre qualquer assunto que fosse comum aos homens. Dessa maneira, transformou o simples ato de observar o cotidiano dos protagonistas em obras primas da literatura.

Blaise Pascal (1623 – 1662),  matemático, astrônomo, filósofo e teólogo inicialmente produziu obras voltadas para geometria e teoria das probabilidades. Mais tarde, voltado para a teologia,  introduziu a angústia –  a inquietação – como elemento central e essencial na filosofia. Para ele, são dois os tipos de pessoas: as dotadas do espírito do geômetra, que reduzem tudo ao estado puro, e aquelas  dotadas do espírito da finura,  que não evitam a angustia. Estas, segundo seus princípios, são  as que mais lhe interessavam, já que para ele seria impossível ao homem conhecer sua grandeza sem conhecer sua miséria.

O teatro francês representou um avanço artístico na figura de dois nomes: Jean Racine (1639-1699) e Molière 1622-1673).Racine, trágico, levou a arte à corte com suas tragédias, relatando os impasses da vida aristocrática e incorporando nelas a  língua teatral. Molière, cômico, colocou a linguagem popular no texto teatral , incorporando no drama o modo peculiar da fala francesa. Com seus métodos, ambos deram valor central à língua, com o cuidado de fazer com que o corpo indicasse o sentido do falar. A partir daí, Luis XIV decretou a fundação da Comédie Française.

Era um tempo em que  a França estava segura. Poderosa e influente na Europa, influenciou inclusive o império russo, que adotou em sua corte a língua e os  costumes  franceses. Sem depender do Vaticano, sem se incomodar com a irracionalidade do poder da Espanha nem com o Canal da Mancha, a França já tinha a Normandia incorporada ao seu território. Na pintura, Jean Honoré Fragonard produzia arte erotizada. E surgiu o primeiro romance escrito por Madame de Lafayette (1634-1693) que em vez de se interessar por problemas domésticos, resolveu escrever um enredo onde uma personagem feminina, a Princesa de Clèves, aniquilada entre a razão e a paixão, representava  a síntese dos pensamentos de Descartes e Pascal. Uma ousadia francesa.  Paris ganhava status de centro do mundo.

Mas nem tudo caminhava bem.  Nesse tempo a Europa passava por uma fase de grandes avanços científicos e esses reflexos acabaram por influenciar as manifestações filosóficas e literárias na França. Os monarcas do tempo posterior ao apogeu cultural levaram o país a grande crise financeira  provocada por reiterados erros administrativos que desencadearam a penúria popular, enquanto a nobreza continuava a manter seus luxos. Com a nova visão de mundo e a atuação dos intelectuais surge o Iluminismo, uma nova escola onde a razão, e não mais a fé em dogmas pré-estabelecidos, passa a vigorar no pensamento. Com isso, foram derrubados todos os pilares de então. A partir da razão, do sofrimento, da cultura , da comunicação e do entendimento vislumbrou-se a possibilidade de mudança de rumos e dessa maneira foi-se firmando uma nova força que emanava das pessoas comuns, ao mesmo tempo em que a  monarquia absolutista se encaminhava para o fim.

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A intelectualidade francesa ganhou força  com o surgimento da Enciclopédia, com seus  dezessete volumes de informações filosóficas e científicas publicadas entre 1751 a 1772. Elaborada pelo filósofo e escritor  Denis Diderot, interessado pela parte humanística, e pelo filósofo e cientista Jean Le Rond d’Alembert, este responsável pela parte científico-matemática,  privilegiava o uso da razão em detrimento dos dogmas da Igreja. Nela atuaram intelectuais de peso, como o perspicaz e espirituoso  Voltaire que defendia, apesar da censura e das prisões, a reforma social, criticando abertamente a Igreja e as instituições francesas;   Montesquieu que com sua famosa obra O Espírito das Leis, em 1748,  defendia um sistema de governo constitucional, a separação dos poderes, a preservação das liberdades civis, a manutenção das leis e o fim da escravidão. Esses valores e esses ideais causavam grande impacto na população, somados ao  Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens em 1755 e Contrato Social em 1762 de Jean Jacques Rousseau. Estava formada a fonte  de inspiração ideológica para todos aqueles que desejavam o fim do Absolutismo. A sociedade compreendeu que poderia se posicionar e ajudar a mudar as regras do jogo.

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